sábado, 20 de outubro de 2012

Ontem à Tarde um Homem das Cidades







Ontem à Tarde um Homem das Cidades

Ontem à tarde um homem das cidades
Falava à porta da estalagem.
Falava comigo também.

Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm fome,

E dos ricos, que só têm costas para isso.
E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia

O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele dizia que sentia.
(Mas eu mal o estava ouvindo.

Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu — não sofrerão.

Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os
outros,
Quer para fazer bem, quer para fazer mal.

A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.
Querer mais é perder isto, e ser infeliz.)
Eu no que estava pensando

Quando o amigo de gente falava
(E isso me comoveu até às lágrimas),
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos

A esse entardecer
Não parecia os sinos duma capela pequenina
A que fossem à missa as flores e os regatos

E as almas simples como a minha.
(Louvado seja Deus que não sou bom,
E tenho o egoísmo natural das flores

E dos rios que seguem o seu caminho
Preocupados sem o saber
Só com florir e ir correndo.

É essa a única missão no Mundo,
Essa — existir claramente,
E saber faze-lo sem pensar nisso.

E o homem calara-se, olhando o poente.
Mas que tem com o poente quem odeia e ama?




Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XXXII"

Heterónimo de Fernando Pessoa

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